domingo, 4 de setembro de 2011

Nadando contra o preconceito


Por Guilherme Uchoa

Dentro d’água é impossível ouvirmos e sermos ouvidos, o que torna a comunicação humana praticamente impossível. Neste ambiente, a melhor forma de se comunicar com outra pessoa é por meio de gestos, sinais e olhares. Talvez seja por isso que Guilherme Maia Kabbach, de 21 anos, tenha adquirido um gosto tão especial pelo ambiente aquático: porque dentro da água todos estão limitados a comunicar-se exatamente como ele.

Fora desse ambiente, sua deficiência auditiva, que o acompanha desde o nascimento, o limita a apenas 2% da audição normal. Mas ele não usa a piscina como meio de igualar-se aos outros. Na verdade, a utiliza como meio de se superar. Salta da plataforma com o corpo em posição anatomicamente perfeita, projetando-se dentro d’água de forma a atravessá-la o mais rápido possível. Depois, com braçadas firmes e poderosas, atravessa os 200 metros de distância de sua prova em um minuto e 56 segundos. Foi assim que conquistou a medalha de prata nos 200 metros livres do Mundial de Natação para Surdos, realizado na cidade de Coimbra, em Portugal, em agosto último.

Ao descrever a conquista, o nadador não economiza palavras sobre o que este momento representou:

— Foi emocionante! Até chorei no pódio. Foi uma grande vitória, pois mostrei a muitas pessoas que o surdo é capaz de ter um papel importante na sociedade.

Guilherme tem uma tatuagem com o primeiro nome da mãe impressa no dorso: Andrea. Existe um forte relacionamento entre eles, o que fica claro quando Guilherme afirma preferir ser chamado de ‘Gui Maia’, justamente para poder carregar o sobrenome de sua mãe. Com 1 ano e dois meses de vida ele iniciou os trabalhos de fonaudiologia. Como resultado, hoje consegue reproduzir algumas palavras do vocabulário de forma compreensível.

Antes disso, Guilherme começou a ter aulas de natação. Com quatro meses, a mãe, com as credenciais de ex-nadadora, campeã paulista e professora de natação, ensinou-o as primeiras braçadas.


Os frutos dessa iniciação tão precoce estão surgindo agora. Além desta medalha, o nadador conquistou mais uma prata e um bronze, totalizando as três primeiras medalhas brasileiras na história da natação surda.

Por si só estas conquistas já colocariam seu nome na história do esporte nacional. Mas ainda é pouco para Guilherme. Às 10h30 de uma quinta-feira de agosto ele chega para mais um dia de treino, na Academia Unique 1, na Vila Mathias, em Santos. Ao chegar lá pergunto ao segurança por onde devo ir para chegar à piscina. Ele pergunta:

— O que você vai fazer lá?

— Vim acompanhar o treino do Guilherme Maia.

Então o segurança diz:

— Ah! O da faixa ali? — e aponta para uma faixa estendida na porta de entrada da academia, parabenizando o jovem nadador por suas três medalhas do mundial.

Guilherme treina na academia por opção própria. Largou o Clube Internacional de Regatas, para seguir o treinador Tiago Faria, que foi demitido do clube após diversos desentendimentos com dirigentes.

Na piscina, Guilherme Maia já esta na água, indo e voltando dentro de sua raia, revezando diversos estilos de nado. O ambiente é tranquilo: três outros nadadores dividem espaço com ele. O treinador passa orientações para os demais atletas presentes e depois se dirige a Maia. Utiliza muitos gestos — quase como um técnico de futebol orientando seu time em campo — e uma fala pausada, para ter certeza de que o medalhista compreendeu quais devem ser os próximos exercícios. Por sua vez, Guilherme permanece tranquilo a borda da piscina, prestando atenção nas orientações técnicas, enquanto bebe um pouco de proteína.

Os dois, treinador e nadador, mostram que se entendem muito bem. Tiago Faria trabalha com Guilherme há seis anos. A intimidade adquirida com a rotina de treinos, viagens e competições faz com que o treinador não se sinta intimidado ao corrigir uma, duas e até três vezes um movimento de ondulação que Guilherme está fazendo errado.

Com o passar do tempo, a piscina passa a ficar cheia com a chegada de mais alunos pagantes da academia. Entretanto, Maia é único que dispõe de uma raia só para si, enquanto os demais dividem as outras. Sua preparação é para o Pan-Americano para Surdos, que ocorrerá em Uberlândia, em novembro. Seu principal objetivo no torneio é a medalha de ouro. Primeiramente, para conquistar a primeira medalha de ouro para o Brasil na natação surda e também para tentar atrair a atenção de alguma empresa que queira patrociná-lo.

— Estou precisando de patrocínio, pois os gastos são altos com suplementos alimentares, equipamentos e viagens. Gostaria de ter uma ajuda da prefeitura. Quem sabe Santos, que já foi a capital do esporte, volte aos pódios com louvor — diz Guilherme por e-mail.

Para se ter noção, ele e a sua família ainda têm de bancar todas as viagens que ele deve fazer para competir. Foi assim em 2009, nas Olimpíadas para Surdos, no Taipei (Taiwan), quando só conseguiram patrocínio a menos de dois dias do início da competição. Também foi assim no Mundial de Coimbra, de onde Guilherme trouxe as três conquistas.

Mas este não é o assunto que mais incomoda o atleta. Sua maior mágoa vem do preconceito:

— Ser chamado de “mudinho” me entristece! Nossa fala apresenta dificuldades, por não ouvimos os sons. Todos nós estamos sujeitos a perder a audição ou termos filhos assim, não é?

Talvez este sofrimento tenha começado em sua época de escola. Quando mais novo, o problema auditivo serviu como barreira para a aprendizagem. Guilherme interagia pouco com os colegas de sala e a professora sempre tinha que se dirigir à sua mesa, a fim de certificar-se de que havia entendido o conteúdo que ela havia acabado de passar para a turma.


Mesmo com essas dificuldades, o tempo passou. E tempo é tudo dentro da natação. Apesar do pouco tempo, Guilherme faz questão de esperar que eu termine de conversar com Tiago para só então ir embora para casa. De tarde, ele volta para a academia onde faz o treino físico, além de conciliar esses esforços com os deveres acadêmicos que o curso de Educação Física exige.

Guilherme Maia não pode perder tempo em sua luta diária. Uma luta contra a falta de apoio a sua modalidade, uma luta contra o tempo nas piscinas, e, principalmente, uma luta contra o preconceito fora delas.


A matéria foi produzida para a revista ' 3x4 ', projeto dos alunos do terceiro ano de Jornalismo da Universidade Santa Cecília.

2 comentários:

  1. esse é o seu segundo texto que gostei muito, parabens amor. =)...
    Continue assim, voce sabe lidar com as palavras..
    sz

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  2. Curti demais teu texto uchoa, vc ta mandando muito bem no teu blog, só assunto bom. Continua assim parceiro. Abrção.

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