quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Um ponto de esperança em meio à Cracolândia

Por Guilherme Uchoa

As histórias de três homens que, de origens distintas, e depois de quase perderam suas vidas para as drogas, tentam servir de exemplo para a superação de viciados na Cracolândia

É uma manhã de terça-feira fria no mês de julho, feriado em São Paulo, e a maior parte dos comércios do bairro Campos Elíseos está fechada. Mas na altura do número 509 da Alameda Barão de Piracicaba, o movimento é constante. O vai-e-vêm é formado por moradores de rua enrolados em peças de roupas gastas e cobertores igualmente velhos, em busca de um prato de comida e/ou oportunidade de tomar um banho.

O local em questão, quase um oásis em meio ao deserto de pobreza que assola a região, é conhecido como Cristolândia – referência ao apelido pelo qual aquela área paulista é denominada por conta do grande número de usuários de crack: a Cracolândia.

Para chegar à unidade da Cristolândia é preciso percorrer os 10, 15 minutos de distância, desde a estação da Luz de metrô, com os olhos atentos, já que o percurso não é nada convidativo. Em um curto espaço percorrido é possível ver três bases da Polícia Militar, um terreno baldio que é utilizado por crianças do bairro como área de lazer (a bola de futebol e as traves armadas dividem espaço com pipas), incontáveis moradores de rua, o cheiro forte de urina, lixo e entulhos espalhados pelas calçadas, além de, é claro, o enorme receio de uma abordagem agressiva por parte de algum usuário de entorpecentes.

Quando finalmente a residência é encontrada, por volta das 10h30, os preparativos para o culto pré-almoço estão sendo feitos. O projeto, mantido pela Igreja Batista, e que foi criado em 2009, conta atualmente com 400 dependentes químicos internados nos seis centros de recuperação no Estado de São Paulo – nas cidades de Itaquaquecetuba, Bauru, Cajobí, Pedra Bela, Mauá e a própria unidade da capital – e nas demais unidades da Cristolândia espalhadas pelo Brasil, como Rio de Janeiro, Espírito Santo, Recife, Rondônia, Brasília e Minas Gerais.

Além disso, são oferecidas 1.900 refeições por dia para os desabrigados e aproximadamente 4.000 pessoas já foram retiradas das ruas pela iniciativa.

As estatísticas são enumeradas pelo Pastor Humberto Machado, responsável pela criação dessas atividades em São Paulo. Ele conta que sua igreja teve como ideia inicial o desenvolvimento de um projeto chamado “Radical Brasil”, que teria como função converter os moradores de rua dos bairros pobres da cidade.

Entretanto, segundo Machado, ele percebeu que a principal necessidade dos dependentes químicos era de um lugar para que pudessem permanecer longe das drogas. “Entendi que nas ruas da Cracolândia eu não tinha que evangelizar porque a maioria deles já era evangelizada”, conta. “Daí, surgiu a ideia de tirar esse povo das ruas e então, criamos a Cristolândia”, explica.
Os “alunos” – como os voluntários do projeto preferem chamar os internados – moram nos fundos da residência e trabalham com quaisquer atividades relacionadas ao local.

Ainda segundo Humberto Machado, a falta de lugares apropriados para realizar internações faz com que os viciados retornem para as ruas. “Eles [dependentes] querem sair [do vício e das ruas]. Agora não tem lugar suficiente, pois tem muita gente. Existe o interesse, mas falta lugar”, lamenta. “Como não tem, eles acabam voltando para as ruas. É a única solução deles, né? As ruas”, conclui.

E é justamente das ruas que começam a vir os usuários de drogas que vão tomando conta do salão onde o almoço será servido. Um deles se aproxima do repórter, talvez imaginando que fosse um dos voluntários da casa, e pergunta se o almoço será servido. Imediatamente, o morador de rua é tranquilizado por um colega: “vai ter sim”.

Um pouco mais distante sentados em volta de uma mesa de plástico redonda, estão dois missionários ao lado de um homem de olhar perdido. Este foi levado para a Cristolândia pelos pais, que pretendem interná-lo. Após o preenchimento de algumas papeladas e alguns minutos de conversa, a mãe despede-se do filho com um beijo na cabeça, deixando-o aos cuidados de voluntários.

Próximo do meio dia tem inicio o curto culto que estava programado, com cerca de 70 pessoas sentadas diante de um púlpito. No publico, composto por desabrigados maltrapilhos, alguns até descalços, exalando forte cheiro, há quem não esteja interessado nas palavras proferidas e aproveite o tempo para cochilar. Também há os que respondem com risadas irônicas às perguntas e afirmações feitas pelo jovem missionário que segura o microfone.

Uma das missionárias do projeto confessa que alguns viciados chegam à residência de manhã para tomar banho e comer o café da manhã oferecido, voltam para as ruas onde fazem uso de mais drogas, e então retornam na parte da tarde para almoçar.

Mas também há aqueles que acompanham atentamente o sermão. Enquanto o missionário que prega o culto usa de metáforas e citações bíblicas para convencer sua plateia de que são capazes de superar o vício e recomeçar suas vidas, parte dos ouvintes demonstra concordar com as palavras e aderem à oração de encerramento que o jovem convoca.

Do fundo do salão um senhor de muletas não consegue se levantar para participar da reza, mas ergue os braços e fecha os olhos em sinal de respeito.

A partir de então, distribuindo os presentes em mesas com cinco pessoas cada, o aguardado almoço é servido.

Mas é em uma salinha minúscula, anexa ao pátio, abarrotada com mais mesas e cadeiras de plástico do que o recomendado para tão poucos metros quadrados, que serve de confessionário. É ali que Carlos Alberto do Santos Lima, ou apenas “Betão”, de 53 anos, emociona-se e deixa escapar algumas lágrimas ao rememorar as mudanças de curso que sua vida teve em função das drogas.

O baiano natural de Salvador afirma que largou o vício em 1984, apesar de assumir que teve “algumas escorregadinhas” depois desse período.

“Tudo”, entretanto, “muito rápido!”, apressa-se em garantir.

Betão é um homem alto, magro, de presença marcante e pele morena. O cabelo curto e um pouco grisalho disfarçam os mais de meio século de idade, mas as mãos e roupas sujas de tinta evidenciam sua atual função na casa: “Agora sou pintor, mas faço um pouco de tudo. Já fui cozinheiro, segurança da casa, de tudo um pouco”, conta.

Dono de uma fala mansa e pausada, Carlos Alberto conta que com oito anos de idade perdeu a mãe e ficou aos cuidados das tias. Os maus tratos delas fizeram com que ele optasse por viver nas ruas de Salvador, onde teve o primeiro contato com as drogas.

“Com 13 anos eu já tava cometendo determinados furtos. Furtos leves, como entrar em supermercado para pegar um pacote de biscoito ou pilhas, pra vender. No meio disso tudo, tive o primeiro contato com a maconha”, lembra. “Na primeira vez que fumei, achei uma coisa inusitada, muito legal”, conta.

Depois de alguns anos, o baiano acabou detido. “Com 17 anos eu ‘puxei’ a primeira cadeia. Era uma cadeia correcional. Tinha feito um arrombamento no carro de um coronel e peguei a pistola dele, uma colt 45, e acabaram me levando para um presídio chamado de “Pedra Preta”, relembra.

“Lá, eu passei de 10 meses para um ano e aprendi outras modalidades de furto, como ‘lance’, ‘arrombamento’, ‘entradinha’, que é quando a pessoa deixa a janela aberta, você entra e pega os objetos. Quando eu vim acordar, querido, eu já estava todo envolvido na droga e no roubo”, afirma.

“Então eu comecei a me enveredar mais ainda nas drogas. Comecei a tomar remédio que ‘batia onda’, como a gente fala, usei tudo que você possa imaginar. Optalidon, Fluorinal, Mandrix, ácido, maconha, cocaína, “cheirinho da loló”, tudo que dizia que ‘botava lombra’, até desodorante eu cheirava. Quando não tinha nada, eu pegava mata-barata, que tem clorofórmio e benzina, e cheirava. Eu era um viciado crônico. Até gasolina eu já cheirei”, enumera.

“Também fui me aprofundando mais nas modalidades [de crimes]. A modalidade roubar carteira eu treinava de manha em um paletó, no bolso de uma calça, pra de tarde ir pros pontos de ônibus pra botar em prática aquilo que eu treinava”, prossegue.

Carlos Alberto voltaria a ser preso e ao sair, depois de dois anos encarcerado, tentou tirar a própria vida. “Eu sai [da cadeia] todo debilitado, sem perspectiva nenhuma de vida, porque é uma experiência horrível. Apoio de parente eu não tinha e não aguentava mais o sofrimento, então só me restava a morte. A morte, para mim, seria o ponto final da minha história”, relata, antes de explicar porque não seguiu com a medida. “Eu preparei um copo com veneno de rato, mas na hora de tomar, uma senhora chamada Dona Lúcia, minha vizinha, me chamou, deu um copo de café com leite e um pão com manteiga e me aconselhou a não fazer aquilo, então eu desisti”, conclui.

E outra oportunidade, Betão esteve diante da morte. Após roubar o relógio da filha de um policial, foi encontrado por dois policiais enquanto estava deitado nas ruas de Salvador, sob efeito de drogas. “Um policial mais novo puxou a arma e disse ‘vamô matar esse desgraçado agora! ’, mas o outro disse ‘rapaz, larga essa miséria ai, que isso ai não vale nem uma bala, ele vai morrer ai mesmo. Pelo menos esse crime você não leva nas costas”, relata.

Depois de todos os problemas pelos quais passou, o baiano resolveu seguir os conselhos de um amigo e procurou abrigo em uma igreja. No lugar, garante ele, teve um encontro com Jesus que mudou sua vida, fazendo-o passar sete meses em uma casa de recuperação até conseguir largar as drogas. Após passar por diversas cidades auxiliando no restabelecimento de outros viciados, Carlos Alberto chegou em São Paulo, para colaborar com os missionários da Cristolândia.

Para o africano Hideraldo Laval, de 36 anos, a entrada no mundo das drogas não se deu por conta de falta de estrutura familiar, e sim pelo choque de chegar em uma cidade das proporções de São Paulo vindo de outra bem menor.

Laval é natural de Bissau, capital de Guiné-Bissau, cidade que conta com pouco menos de 400 mil habitantes. Em 2009, o homem negro, alto, forte e de óculos tomou avião, tendo o Brasil como destino, para estudar direito na UNIP. Entretanto, o relacionamento com pessoas erradas fez com que perdesse o rumo.

“Conheci uma vez uma menina usuária de crack daqui do centro de São Paulo, que levou pedra de crack para minha casa e deixou lá. Eu não conhecia e fumei. Quando comecei a fumar, foi complicado. Primeiro fumava só em dias de final de semana, mas não aguentei e fumei em dias de semana”, relata.

A intensificação no uso da droga fez com que Hideraldo perdesse tudo: “Morava em uma casa de estudantes, mas quando comecei a fumar, comecei a levar mulheres para lá. Fazia barulho, não estudava, então, um dia eu cheguei e tinha um comunicado na porta de que eu tinha 10 dias para ficar. Então peguei algumas coisas que tinham sobrado, porque já tinha vendido meus materiais, e fui embora”, diz.

De lá, o estudante foi morar embaixo de uma ponte, mas seus pertences não duraram muito tempo, já que na manhã seguinte deu conta de que haviam roubado tudo que levava em uma mochila. Sem faculdade, sem moradia e sem seus pertences, o africano relata que catava lixo para sustentar o vício durante os nove meses que permaneceu nas ruas da capital.

“Às vezes passava uns 15 dias sem fumar, mas sempre voltava. Morava em um albergue e lá acabava pegando um cara como amigo e ele me levava para boca de fumo. Sempre a mesma história. Eu podia ficar uma semana sem fumar, mas voltava. No último desses nove meses, eu passei fumando direto”, lamenta.

Nesse período, o contato com os parentes, que estavam morando em Portugal, era raro. “As vezes ficava dois meses sem falar com minha família, às vezes somente depois de 90 dias. Quando ligava, era em momentos em que estava muito drogado e precisava da voz da minha mãe”, diz.

Apesar disso, Hideraldo ainda acreditava que poderia sair do vício sem auxílio. “Eu sempre achei que por mim mesmo eu conseguia parar, mas eu precisava de uma estrutura, por que o que mais me dificultava para parar era conviver com as pessoas em albergue que vão roubar. Era um lugar que eu não podia ficar. Então quando eu consegui essa estrutura eu fiquei bem”, avalia.

A estrutura que o africano cita é justamente a Cristolândia, onde foi procurar abrigo. De lá, foi encaminhado para uma casa de recuperação, onde permaneceu por 112 dias, antes de ser chamado de volta para auxiliar o projeto. 

Segundo ele, um dos fatores primordiais para sua entrada no mundo das drogas foi o deslumbramento de viver em uma metrópole.

“Eu saí de uma cidade muito pequena e cheguei numa cidade muito grande onde tudo é livre. Tem uma sensação de liberdade muito grande. A gente passa na rua e vê cara usando droga, vê cara se prostituindo, vê um monte de coisa, então tem uma sensação de liberdade que não tinha na minha cidade. Quando eu peguei no crack, eu não tinha esse conhecimento do tamanho de destruição que ele tem. Peguei como qualquer outra coisa, como uma cerveja que eu bebia. Por curiosidade”, explica.

Já a história de Lodemiro José Silva, de 37 anos, tem um contexto semelhante ao vivido pela maioria das pessoas que aderem as drogas: falta de estrutura familiar.

Nascido em Alfenas, em Minas Gerais, Lodemiro teve o primeiro contato com o álcool com apenas oito anos. Segundo ele, foi com essa idade que, em uma tentativa desesperada de se livrar do álcool que viciara sua mãe, consumiu todas as bebidas alcoólicas que tinha em casa. O plano não funcionou e a partir de então ambos passaram a beber.

Três anos depois, o mineiro começou a usar drogas. “A primeira vez que usei drogas foi com 11 anos. Aprendi com o pessoal da cidade onde comprar o clorofórmio e o éter para fazer a lança-perfume e então passei a usar”, recorda.

Depois veio o vício em maconha, seguido de demais entorpecentes, antes de perder a mãe, ainda com 13 anos. “Da maconha foi para a cocaína e da cocaína foi para o cogumelo, até chegar ao fundo do poço, que é o crack. Crack é a destruição. Fiquei 16 anos viciado nessa droga”, confidencia.

Lodemiro só veio a conhecer seu pai com 16 anos, mas a relação com o genitor, que era capitão da Policia Militar, não deu certo e no ano seguinte o jovem resolveu ir para São Paulo. No Estado paulista percorreu cidades como Santos, São Vicente e Campinas.

Na capital, Lodemiro aprofundou-se mais ainda no vício, chegou a ser preso e passou por 22 casas de recuperação, mas ainda assim acredita que teve sorte por nada pior ter acontecido, lembrando-se de um episódio em que uma tentativa frustrada de assalto fez com que disparassem diversas balas contra sua direção, sem conseguir atingi-lo. Além disso, ele ainda recorda que mesmo mantendo relações com diversas mulheres nas ruas, nunca foi contaminado com o vírus do HIV.

Das mais de 20 casas por onde o mineiro passou, a última, que tinha vincula com a Cristolândia, foi a responsável por seu restabelecimento, depois de um processo de oito meses.

Atualmente, Carlos Alberto pretende voltar para Salvador, onde deixou a esposa e o filho de 14 anos, para abrir uma casa de recuperação. Hideraldo já está a três anos “limpo” e está cursando Teologia. Seus planos são de retornar para Guiné-Bissau, como missionário, ao concluir o curso. Por fim, Lodemiro espera tornar-se um pastor e seguir usando suas experiências para tentar tirar outras pessoas das drogas.


Mesmo tendo origens e histórias distintas, os três homens tentam servir de inspiração para tantas outras pessoas que, como eles, perderam o rumo de suas vidas nas drogas. Hoje, eles tentam ser o oásis que um dia encontraram no meio do deserto. 

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