As histórias de três homens que, de origens distintas, e depois de quase perderam suas vidas para as drogas, tentam servir de exemplo para a superação de viciados na Cracolândia
É uma manhã de terça-feira
fria no mês de julho, feriado em São Paulo, e a maior parte dos comércios do bairro
Campos Elíseos está fechada. Mas na altura do número 509 da Alameda Barão de
Piracicaba, o movimento é constante. O vai-e-vêm é formado por moradores de rua
enrolados em peças de roupas gastas e cobertores igualmente velhos, em busca de
um prato de comida e/ou oportunidade de tomar um banho.
O local em questão, quase um
oásis em meio ao deserto de pobreza que assola a região, é conhecido como
Cristolândia – referência ao apelido pelo qual aquela área paulista é
denominada por conta do grande número de usuários de crack: a Cracolândia.
Para chegar à unidade da
Cristolândia é preciso percorrer os 10, 15 minutos de distância, desde a
estação da Luz de metrô, com os olhos atentos, já que o percurso não é nada
convidativo. Em um curto espaço percorrido é possível ver três bases da Polícia
Militar, um terreno baldio que é utilizado por crianças do bairro como área de
lazer (a bola de futebol e as traves armadas dividem espaço com pipas),
incontáveis moradores de rua, o cheiro forte de urina, lixo e entulhos
espalhados pelas calçadas, além de, é claro, o enorme receio de uma abordagem
agressiva por parte de algum usuário de entorpecentes.
Quando finalmente a
residência é encontrada, por volta das 10h30, os preparativos para o culto
pré-almoço estão sendo feitos. O projeto, mantido pela Igreja Batista, e que
foi criado em 2009, conta atualmente com 400 dependentes químicos internados
nos seis centros de recuperação no Estado de São Paulo – nas cidades de
Itaquaquecetuba, Bauru, Cajobí, Pedra Bela, Mauá e
a própria unidade da capital – e nas demais unidades da Cristolândia espalhadas
pelo Brasil, como Rio de Janeiro, Espírito Santo, Recife, Rondônia, Brasília e
Minas Gerais.
Além disso, são oferecidas
1.900 refeições por dia para os desabrigados e aproximadamente 4.000 pessoas já
foram retiradas das ruas pela iniciativa.
As estatísticas são
enumeradas pelo Pastor Humberto Machado, responsável pela criação dessas
atividades em São Paulo. Ele conta que sua igreja teve como ideia inicial o
desenvolvimento de um projeto chamado “Radical Brasil”, que teria como função converter
os moradores de rua dos bairros pobres da cidade.
Entretanto, segundo Machado,
ele percebeu que a principal necessidade dos dependentes químicos era de um
lugar para que pudessem permanecer longe das drogas. “Entendi que nas ruas da
Cracolândia eu não tinha que evangelizar porque a maioria deles já era
evangelizada”, conta. “Daí, surgiu a ideia de tirar esse povo das ruas e então,
criamos a Cristolândia”, explica.
Os “alunos” – como os
voluntários do projeto preferem chamar os internados – moram nos fundos da
residência e trabalham com quaisquer atividades relacionadas ao local.
Ainda segundo Humberto
Machado, a falta de lugares apropriados para realizar internações faz com que
os viciados retornem para as ruas. “Eles [dependentes] querem sair [do vício e
das ruas]. Agora não tem lugar suficiente, pois tem muita gente. Existe o
interesse, mas falta lugar”, lamenta. “Como não tem, eles acabam voltando para
as ruas. É a única solução deles, né? As ruas”, conclui.
E é justamente das ruas que
começam a vir os usuários de drogas que vão tomando conta do salão onde o
almoço será servido. Um deles se aproxima do repórter, talvez imaginando que
fosse um dos voluntários da casa, e pergunta se o almoço será servido.
Imediatamente, o morador de rua é tranquilizado por um colega: “vai ter sim”.
Um pouco mais distante
sentados em volta de uma mesa de plástico redonda, estão dois missionários ao
lado de um homem de olhar perdido. Este foi levado para a Cristolândia pelos
pais, que pretendem interná-lo. Após o preenchimento de algumas papeladas e alguns
minutos de conversa, a mãe despede-se do filho com um beijo na cabeça,
deixando-o aos cuidados de voluntários.
Próximo do meio dia tem
inicio o curto culto que estava programado, com cerca de 70 pessoas sentadas
diante de um púlpito. No publico, composto por desabrigados maltrapilhos,
alguns até descalços, exalando forte cheiro, há quem não esteja interessado nas
palavras proferidas e aproveite o tempo para cochilar. Também há os que
respondem com risadas irônicas às perguntas e afirmações feitas pelo jovem missionário
que segura o microfone.
Uma das missionárias do
projeto confessa que alguns viciados chegam à residência de manhã para tomar
banho e comer o café da manhã oferecido, voltam para as ruas onde fazem uso de
mais drogas, e então retornam na parte da tarde para almoçar.
Mas também há aqueles que
acompanham atentamente o sermão. Enquanto o missionário que prega o culto usa
de metáforas e citações bíblicas para convencer sua plateia de que são capazes
de superar o vício e recomeçar suas vidas, parte dos ouvintes demonstra
concordar com as palavras e aderem à oração de encerramento que o jovem
convoca.
Do fundo do salão um senhor
de muletas não consegue se levantar para participar da reza, mas ergue os
braços e fecha os olhos em sinal de respeito.
A partir de então,
distribuindo os presentes em mesas com cinco pessoas cada, o aguardado almoço é
servido.
Mas é em uma salinha
minúscula, anexa ao pátio, abarrotada com mais mesas e cadeiras de plástico do
que o recomendado para tão poucos metros quadrados, que serve de
confessionário. É ali que Carlos Alberto do Santos Lima, ou apenas “Betão”, de
53 anos, emociona-se e deixa escapar algumas lágrimas ao rememorar as mudanças
de curso que sua vida teve em função das drogas.
O baiano natural de Salvador
afirma que largou o vício em 1984, apesar de assumir que teve “algumas
escorregadinhas” depois desse período.
“Tudo”, entretanto, “muito
rápido!”, apressa-se em garantir.
Betão é um homem alto,
magro, de presença marcante e pele morena. O cabelo curto e um pouco grisalho disfarçam
os mais de meio século de idade, mas as mãos e roupas sujas de tinta evidenciam
sua atual função na casa: “Agora sou pintor, mas faço um pouco de tudo. Já fui
cozinheiro, segurança da casa, de tudo um pouco”, conta.
Dono de uma fala mansa e
pausada, Carlos Alberto conta que com oito anos de idade perdeu a mãe e ficou
aos cuidados das tias. Os maus tratos delas fizeram com que ele optasse por viver
nas ruas de Salvador, onde teve o primeiro contato com as drogas.
“Com 13 anos eu já tava
cometendo determinados furtos. Furtos leves, como entrar em supermercado para
pegar um pacote de biscoito ou pilhas, pra vender. No meio disso tudo, tive o
primeiro contato com a maconha”, lembra. “Na primeira vez que fumei, achei uma
coisa inusitada, muito legal”, conta.
Depois de alguns anos, o
baiano acabou detido. “Com 17 anos eu ‘puxei’ a primeira cadeia. Era uma cadeia
correcional. Tinha feito um arrombamento no carro de um coronel e peguei a
pistola dele, uma colt 45, e acabaram me levando para um presídio chamado de
“Pedra Preta”, relembra.
“Lá, eu passei de 10 meses
para um ano e aprendi outras modalidades de furto, como ‘lance’,
‘arrombamento’, ‘entradinha’, que é quando a pessoa deixa a janela aberta, você
entra e pega os objetos. Quando eu vim acordar, querido, eu já estava todo
envolvido na droga e no roubo”, afirma.
“Então eu comecei a me
enveredar mais ainda nas drogas. Comecei a tomar remédio que ‘batia onda’, como
a gente fala, usei tudo que você possa imaginar. Optalidon, Fluorinal, Mandrix,
ácido, maconha, cocaína, “cheirinho da loló”, tudo que dizia que ‘botava lombra’,
até desodorante eu cheirava. Quando não tinha nada, eu pegava mata-barata, que
tem clorofórmio e benzina, e cheirava. Eu era um viciado crônico. Até gasolina
eu já cheirei”, enumera.
“Também fui me aprofundando
mais nas modalidades [de crimes]. A modalidade roubar carteira eu treinava de
manha em um paletó, no bolso de uma calça, pra de tarde ir pros pontos de
ônibus pra botar em prática aquilo que eu treinava”, prossegue.
Carlos Alberto voltaria a
ser preso e ao sair, depois de dois anos encarcerado, tentou tirar a própria vida. “Eu sai [da cadeia] todo debilitado,
sem perspectiva nenhuma de vida, porque é uma experiência horrível. Apoio de
parente eu não tinha e não aguentava mais o sofrimento, então só me restava a
morte. A morte, para mim, seria o ponto final da minha história”, relata, antes
de explicar porque não seguiu com a medida. “Eu preparei um copo com veneno de
rato, mas na hora de tomar, uma senhora chamada Dona Lúcia, minha vizinha, me
chamou, deu um copo de café com leite e um pão com manteiga e me aconselhou a
não fazer aquilo, então eu desisti”, conclui.
E outra oportunidade, Betão
esteve diante da morte. Após roubar o relógio da filha de um policial, foi
encontrado por dois policiais enquanto estava deitado nas ruas de Salvador, sob
efeito de drogas. “Um policial mais novo puxou a arma e disse ‘vamô matar esse
desgraçado agora! ’, mas o outro disse ‘rapaz, larga essa miséria ai, que isso
ai não vale nem uma bala, ele vai morrer ai mesmo. Pelo menos esse crime você
não leva nas costas”, relata.
Depois de todos os problemas
pelos quais passou, o baiano resolveu seguir os conselhos de um amigo e
procurou abrigo em uma igreja. No lugar, garante ele, teve um encontro com Jesus
que mudou sua vida, fazendo-o passar sete meses em uma casa de recuperação até
conseguir largar as drogas. Após passar por diversas cidades auxiliando no
restabelecimento de outros viciados, Carlos Alberto chegou em São Paulo, para
colaborar com os missionários da Cristolândia.
Para o africano Hideraldo
Laval, de 36 anos, a entrada no mundo das drogas não se deu por conta de falta
de estrutura familiar, e sim pelo choque de chegar em uma cidade das proporções
de São Paulo vindo de outra bem menor.
Laval é natural de Bissau,
capital de Guiné-Bissau, cidade que conta com pouco menos de 400 mil
habitantes. Em 2009, o homem negro, alto, forte e de óculos tomou avião, tendo
o Brasil como destino, para estudar direito na UNIP. Entretanto, o
relacionamento com pessoas erradas fez com que perdesse o rumo.
“Conheci uma vez uma menina
usuária de crack daqui do centro de São Paulo, que levou pedra de crack para
minha casa e deixou lá. Eu não conhecia e fumei. Quando comecei a fumar, foi
complicado. Primeiro fumava só em dias de final de semana, mas não aguentei e
fumei em dias de semana”, relata.
A intensificação no uso da
droga fez com que Hideraldo perdesse tudo: “Morava em uma casa de estudantes,
mas quando comecei a fumar, comecei a levar mulheres para lá. Fazia barulho,
não estudava, então, um dia eu cheguei e tinha um comunicado na porta de que eu
tinha 10 dias para ficar. Então peguei algumas coisas que tinham sobrado,
porque já tinha vendido meus materiais, e fui embora”, diz.
De lá, o estudante foi morar
embaixo de uma ponte, mas seus pertences não duraram muito tempo, já que na
manhã seguinte deu conta de que haviam roubado tudo que levava em uma mochila.
Sem faculdade, sem moradia e sem seus pertences, o africano relata que catava
lixo para sustentar o vício durante os nove meses que permaneceu nas ruas da
capital.
“Às vezes passava uns 15
dias sem fumar, mas sempre voltava. Morava em um albergue e lá acabava pegando
um cara como amigo e ele me levava para boca de fumo. Sempre a mesma história.
Eu podia ficar uma semana sem fumar, mas voltava. No último desses nove meses,
eu passei fumando direto”, lamenta.
Nesse período, o contato com
os parentes, que estavam morando em Portugal, era raro. “As vezes ficava dois
meses sem falar com minha família, às vezes somente depois de 90 dias. Quando
ligava, era em momentos em que estava muito drogado e precisava da voz da minha
mãe”, diz.
Apesar disso, Hideraldo
ainda acreditava que poderia sair do vício sem auxílio. “Eu sempre achei que
por mim mesmo eu conseguia parar, mas eu precisava de uma estrutura, por que o
que mais me dificultava para parar era conviver com as pessoas em albergue que
vão roubar. Era um lugar que eu não podia ficar. Então quando eu consegui essa
estrutura eu fiquei bem”, avalia.
A estrutura que o africano
cita é justamente a Cristolândia, onde foi procurar abrigo. De lá, foi
encaminhado para uma casa de recuperação, onde permaneceu por 112 dias, antes
de ser chamado de volta para auxiliar o projeto.
Segundo ele, um dos fatores
primordiais para sua entrada no mundo das drogas foi o deslumbramento de viver
em uma metrópole.
“Eu saí de uma cidade muito
pequena e cheguei numa cidade muito grande onde tudo é livre. Tem uma sensação
de liberdade muito grande. A gente passa na rua e vê cara usando droga, vê cara
se prostituindo, vê um monte de coisa, então tem uma sensação de liberdade que
não tinha na minha cidade. Quando eu peguei no crack, eu não tinha esse
conhecimento do tamanho de destruição que ele tem. Peguei como qualquer outra
coisa, como uma cerveja que eu bebia. Por curiosidade”, explica.
Já a história de Lodemiro
José Silva, de 37 anos, tem um contexto semelhante ao vivido pela maioria das
pessoas que aderem as drogas: falta de estrutura familiar.
Nascido em Alfenas, em Minas
Gerais, Lodemiro teve o primeiro contato com o álcool com apenas oito anos.
Segundo ele, foi com essa idade que, em uma tentativa desesperada de se livrar
do álcool que viciara sua mãe, consumiu todas as bebidas alcoólicas que tinha
em casa. O plano não funcionou e a partir de então ambos passaram a beber.
Três anos depois, o mineiro
começou a usar drogas. “A primeira vez que usei drogas foi com 11 anos. Aprendi
com o pessoal da cidade onde comprar o clorofórmio e o éter para fazer a
lança-perfume e então passei a usar”, recorda.
Depois veio o vício em
maconha, seguido de demais entorpecentes, antes de perder a mãe, ainda com 13
anos. “Da maconha foi para a cocaína e da cocaína foi para o cogumelo, até
chegar ao fundo do poço, que é o crack. Crack é a destruição. Fiquei 16 anos
viciado nessa droga”, confidencia.
Lodemiro só veio a conhecer
seu pai com 16 anos, mas a relação com o genitor, que era capitão da Policia
Militar, não deu certo e no ano seguinte o jovem resolveu ir para São Paulo. No
Estado paulista percorreu cidades como Santos, São Vicente e Campinas.
Na capital, Lodemiro
aprofundou-se mais ainda no vício, chegou a ser preso e passou por 22 casas de
recuperação, mas ainda assim acredita que teve sorte por nada pior ter
acontecido, lembrando-se de um episódio em que uma tentativa frustrada de
assalto fez com que disparassem diversas balas contra sua direção, sem
conseguir atingi-lo. Além disso, ele ainda recorda que mesmo mantendo relações
com diversas mulheres nas ruas, nunca foi contaminado com o vírus do HIV.
Das mais de 20 casas por
onde o mineiro passou, a última, que tinha vincula com a Cristolândia, foi a
responsável por seu restabelecimento, depois de um processo de oito meses.
Atualmente, Carlos Alberto
pretende voltar para Salvador, onde deixou a esposa e o filho de 14 anos, para
abrir uma casa de recuperação. Hideraldo já está a três anos “limpo” e está
cursando Teologia. Seus planos são de retornar para Guiné-Bissau, como
missionário, ao concluir o curso. Por fim, Lodemiro espera tornar-se um pastor
e seguir usando suas experiências para tentar tirar outras pessoas das drogas.
Mesmo tendo origens e
histórias distintas, os três homens tentam servir de inspiração para tantas
outras pessoas que, como eles, perderam o rumo de suas vidas nas drogas. Hoje,
eles tentam ser o oásis que um dia encontraram no meio do deserto.